O trovão que assustava os cachorros

Foram dizer-me que as casas guardavam segredos, iguais aos animais que hibernam no inverno. Eu acreditava. Quando criança, eu ficava parado diante da parede, convencido de que por dentro havia um coração batendo. Talvez fosse o nosso próprio coração que ecoava ali, multiplicado, a dizer que ninguém está sozinho.

O quintal da nossa casa era pequeno. Ainda assim, parecia maior do que o mundo inteiro. Eu corria até a cerca, punha a mão na madeira áspera e sentia que estava na beira de um abismo. Se desse mais um passo, cairia para fora da vida. Gostava desse susto. Gostava porque sabia voltar.

A minha mãe aparecia à janela. O rosto dela não era de sorriso nem de raiva. Era como o céu fechado de nuvens, que tanto podia abrir-se em luz como desabar em trovão. Eu não sabia nunca se devia correr até ela ou ficar quieto, disfarçando o medo.

Naquela época, eu achava que as pessoas nasciam com duas vozes: uma que fala alto e outra que fala por dentro. A minha voz de dentro pedia paz. A de fora, obedecia.

Recordo que, certa noite, faltou luz na cidade. O mundo inteiro pareceu apagado. A minha mãe acendeu uma vela. Eu me encantei. Achei que aquela chama era deus espiando pelo buraco da fechadura. Quis me aproximar, mas ela me empurrou para trás, disse que podia me queimar. Fiquei parado, olhando a chama dançar. Pensei que o fogo não queimava: apenas escolhia em quem acreditar.

Na manhã seguinte, quando acordei, a vela já não existia. Só o pavio retorcido, negro. Perguntei se ainda havia deus ali. Ela não respondeu. Disse apenas para eu arrumar a cama, que criança não devia pensar em bobagens. Eu não queria arrumar a cama. Queria segurar o pavio e assoprar nele até que reacendesse.

Nos domingos, ela me levava à missa. Eu não entendia as palavras do padre. Para mim, eram como vento batendo em vidros. O que eu entendia era a mão dela firme no meu ombro, me segurando como se eu fosse escapar. Olhava os santos no altar e pensava que eram crianças crescidas demais, presas em estátuas. Se tivessem liberdade, talvez corressem comigo até a cerca do quintal e se equilibrassem no abismo.

O tempo passou como o rio que corria atrás da escola. Eu via a água e pensava: deve ser assim a vida, um empurrão constante para frente, sem pedir licença. Às vezes, eu me deitava na grama e fingia que era peixe. Queria ver se também me deixava levar. Mas a voz da minha mãe me chamava de volta, sempre, como um anzol puxando a linha.

Um dia, ouvi minha mãe dizer a alguém que eu precisava ser forte. Eu não sabia o que era ser forte. Para mim, forte era o vento que derrubava a porta, era o trovão que assustava os cachorros. Não podia ser eu. Mas passei a acreditar que talvez ela quisesse que eu fosse uma pedra. Uma pedra nunca sente, nunca reclama. Talvez fosse isso.

Cresci acreditando que um dia conseguiria ser longe. A minha irmã do imaginário (porque às vezes inventava irmãos para não estar sozinho) dizia que ser longe era o maior desejo das pessoas presas. Eu ria. Não entendia. Mas guardava a frase como quem guarda um fósforo para acender depois.

À noite, deitado, ouvia os passos da minha mãe pela casa. Não era barulho de gente, era como se fosse um animal grande rondando. Ela caminhava e eu prendia a respiração, porque sentia que a cada passo ela decidia meu destino: se me deixaria em paz ou se abriria a porta do quarto. Quando não abria, eu agradecia ao escuro.

E foi nesse escuro que aprendi a falar comigo mesmo. Fui crescendo, e a criança dentro de mim nunca mais parou de inventar histórias. Porque era o único modo de suportar: imaginar mundos, imaginar que havia outro lugar onde as mães não fossem tempestades, onde o silêncio não doesse, onde os domingos não fossem eternos.

Houve um dia em que choveu sem parar. A água escorria pelo telhado como se a casa chorasse por nós. Eu sentei no chão do quarto e abri as mãos, tentando segurar um pouco da chuva que escorria pela janela mal fechada. Pensei que, se conseguisse prender uma gota, poderia guardá-la como um segredo. Mas as gotas escorregavam todas, iguais a promessas que nunca se cumprem.

A minha mãe entrou no quarto, olhou para o chão molhado e disse que eu era descuidado. Eu queria dizer que não era descuido, era só esperança. Mas fiquei calado. Às vezes, o silêncio era a minha única forma de defesa, como uma pedra que se fecha para não ser partida.

Nessa noite, sonhei que a casa inteira se transformava em barco. A madeira do assoalho rangia como se já fosse mar, e eu me via navegando sozinho, longe do bairro, longe de tudo. A minha mãe aparecia na beira do barco, mas não falava nada. Apenas me olhava. E o olhar dela era como um nó na corda: me prendia, mas também me mantinha de pé.

Quando acordei, ouvi vozes na cozinha. A minha mãe conversava com vizinhas. Dizia que eu precisava aprender a ser homem cedo, que a vida não perdoava os fracos. Eu pensei, então, que talvez ser homem fosse simplesmente não chorar. Então eu treinava a engolir as lágrimas, até parecer que elas nunca existiram.

Na escola, os outros meninos brincavam de correr e empurrar. Eu ficava à parte, olhando. Não porque tivesse medo, mas porque sempre sentia que voltaria para casa com marcas. E a minha mãe não gostava de ver marcas. Dizia que o corpo mostrava aquilo que a alma devia esconder. Eu não entendia bem, mas concordava, porque era mais seguro.

Certa vez, um colega me deu metade do pão dele. Eu nunca tinha dividido comida fora de casa. Aquilo me pareceu milagre. Segurei o pedaço como quem segura uma pedra preciosa. Pensei em levar para minha mãe, mostrar que havia generosidade no mundo. Mas acabei comendo sozinho, rápido, como se fosse pecado. O gosto daquele pão ficou comigo muitos anos, mais forte do que qualquer outro sabor.

De noite, quando voltava para casa, eu olhava as luzes das outras janelas. Imaginava como eram as mães dos outros. Se riam, se cantavam, se também tinham vozes de tempestade. Desejava entrar em cada casa e perguntar: como é ser filho aqui? Talvez algum dia eu descobrisse que havia lugares mais leves, mas naquele tempo, eu acreditava que toda mãe era igual à minha.

Quando a dor vinha, eu imaginava que os passos pesados da minha mãe pela casa eram na verdade de um gigante que me protegia dos monstros do fiorde. Inventava que as palavras duras dela eram enigmas, e que se eu decifrasse todos, descobriria a senha para sair para sempre.

Assim cresci, meio menino, meio sombra. Entre o desejo de ser livre e o medo de partir. Entre o silêncio e a palavra guardada. Entre o amor e o peso que ele trazia.

No verão, o sol demorava mais a se pôr. Eu ficava sentado na frente de casa, vendo o céu se encher de cores que pareciam inventadas. As pessoas diziam que o pôr do sol era bonito porque anunciava o descanso. Mas eu pensava o contrário: o pôr do sol era bonito porque nos lembrava de que tudo acaba, até a luz.

Minha mãe sentava-se na cadeira, um pouco atrás de mim. Às vezes ela não falava nada, e esse silêncio era o mais suportável. Eu fingia que ela estava ali só para me guardar, não para me cobrar. Imaginava que, se eu não me mexesse, a vida poderia congelar naquele instante: eu olhando o céu, ela imóvel na cadeira, e o tempo todo preso dentro de um jarro de vidro.

Um dia, perguntei a ela se o amor tinha cor. Ela não respondeu. Ficou mexendo as mãos, como quem enrola invisíveis novelos de lã. Então eu decidi sozinho: o amor devia ser transparente, porque se fosse visível, já teria sumido da gente.

Naquela noite, sonhei que eu voava. Não alto, não como os heróis que se desenham nos livros. Voava rente ao chão, bem devagar, como se fosse um balão cansado. A minha mãe corria atrás, com os braços abertos, mas não para me segurar. Era como se ela também quisesse voar. Quando acordei, pensei que talvez fosse isso: talvez a minha mãe tivesse medo, como eu.

Passei a olhar para ela de outro jeito. Não que deixasse de doer, mas eu a via como se fosse também uma criança, só que presa num corpo grande demais. Uma criança que nunca conseguiu brincar direito, que aprendeu cedo demais que o mundo era pesado.

Nesse dia, fiz uma promessa a mim mesmo. Se um dia eu crescesse, não queria ser tempestade. Queria ser vento leve, desses que entram pela janela e fazem as cortinas dançar.

E então adormeci. Pela primeira vez, sem medo dos passos na casa, sem medo do abismo na cerca, sem medo do futuro. Dormi como quem acredita que, apesar de tudo, ainda há um amanhã esperando para ser inventado.

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Estranho à Carne